(*) Por Aldir Guedes Soriano.
“Alice no País das Maravilhas”, obra-prima da literatura inglesa, é um dos livros que mais incomoda. Mergulhar em universo surrealista, envolve sonhos, pesadelos, fantasias, delírios insanos e psicodélicos. Irrita como se tivesse grãos de areia nos olhos. Por outro lado, assim como as ostras do mar produzem as suas pérolas em torno dos grãos de areia, talvez a presente releitura do mencionado livro possa produzir algum resultado satisfatório. Como seres humanos, todos são vulneráveis e estão sujeitos a pesadelos, comédias e tragédias.
Alice, em aventura no estranho país das maravilhas, se depara com o próprio julgamento, marcado pela inversão da lógica e das regras jurídicas do mundo real. Inusitadamente, a rainha, autoridade tirânica desse insano lugar, assim determinou: “Primeiro, a execução; depois, a sentença”. Isso é o contrário do que normalmente ocorre em diversos países democráticos onde primeiro vem a sentença e, depois, a execução.
A inversão das regras e da lógica, que, obviamente, acontece tão somente no país das maravilhas, cria um ambiente de medo, insegurança, dor e sofrimento. Nesse contexto fantasioso, pode-se imaginar que indiciados por algum crime poderiam ser arbitrariamente presos até mesmo sem sentença condenatória ou mesmo inexistindo acusação formal. Meros indiciados poderiam ser apenados com o cancelamento de salários e aposentadorias ou, ainda, com a retenção de seus passaportes. Também se pode supor que as penas poderiam ser impostas por autoridade incompetente, atuando como delegado de polícia, promotor de justiça e juiz. Isso é pura ficção, que acabei de acrescentar ao livro de Lewis Carroll. Tais arbitrariedades, evidentemente, jamais aconteceriam em um país democrático como o Brasil em que o princípio da legalidade é sagrado.
No lendário país das maravilhas, o magistrado poderia antecipar a sentença ou o voto para os meios de comunicação antes da denúncia ou do julgamento. O advogado do indiciado, sem acesso aos autos do sigiloso inquérito, teria que se informar mediante a mídia, abastecida por informações convenientemente fornecidas pelo tribunal. O magistrado também poderia continuar negando o acesso da defesa aos autos mesmo no curso do processo. Isso somente ocorre na ficção. Apesar de absurdos tais expedientes, servem para demonstrar a importância da ampla defesa e do devido processo legal. Felizmente se pode contar com várias garantias constitucionais do mundo real.
Na atual realidade democrática, se alguém ousasse violar regras constitucionais de competência, atuando como juiz e vítima, certamente, seria duramente criticado pela imprensa livre e independente. As associações de advogados e de magistrados não admitiriam esse nível de desatino autoritário. Esse tipo de desvio ético e legal também não seria tolerado pelo Congresso Nacional.
Violações de direitos humanos com o encarceramento em massa de idosos, mulheres e crianças, seguido por maus tratos e tortura, foram observadas tão-somente nas bárbaras eras do nazismo alemão e, também, nas revoluções comunistas. Encarceramentos em massa sob perfídia e com graves violações dos direitos humanos jamais aconteceriam no território nacional, evidentemente.
Ademais, não há no país presos políticos nem jornalistas exilados, parlamentares indiciados por crime de opinião, nem qualquer tipo de censura das redes sociais. Não existem perfis de usuários de redes sociais derrubados ou desmonetizados, muito menos pessoas comuns asiladas em outros países. Jamais houve uma rede social banida nem sequer temporariamente suspensa.
Em 2009, juristas brasileiros protestaram em face da perseguição religiosa e do encarceramento de 36 bahá’ís no Irã, sem acusação formal. Se algo assim ocorresse no Brasil, legiões de ativistas e de associações de direitos humanos se levantariam imediatamente. É de dar dó quando se pensa nos ociosos e entediados defensores de direitos humanos. Que marasmo (!) – eles devem se contentar em denunciar as repetidas violações que ocorrem em ditaduras distantes, como China, Venezuela, Cuba, Irã e Coreia do Norte. Não há registro recente de perseguições políticas ou religiosas no Brasil.
Felizmente, o brasileiro vive em um estado democrático de direito. As instituições preservam fielmente as garantias consagradas na Constituição de 1988. Assim, é possível dormir em paz. Acordar em segurança porque se está em uma democracia. Conforme a Constituição, há liberdade de expressão, direito de associação e de reunião pacífica. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude da lei. Não há crime sem prévia cominação legal. Os magistrados são guardiões do devido processo legal; discretos, falam apenas nos autos; não se intrometem em assuntos políticos; imparciais, respeitam o princípio do juiz natural; levam a jurisprudência da Corte a sério, não atuam casuisticamente e sob nenhuma hipótese violariam a liberdade de expressão do cidadão. Os ministros jamais serão vistos antecipando os seus julgamentos ou votos diante da televisão aberta.
No livro mencionado, a rainha determina a execução de Alice por decapitação. Nesse trágico momento, a menina desperta do sono ao ouvir a voz da irmã. Já experimentei algo parecido. Em uma bela manhã do século passado, eu sonhava que a minha cidade estava sofrendo um ataque aéreo. Enquanto o bombardeio prosseguia, escutava as explosões das bombas. Era 2 de setembro, dia do aniversário da cidade, e o que eu estava ouvindo, na realidade, era a salva comemorativa de tiros. No momento de maior temor, ouvi a voz de minha mãe: “acorda, hoje você deve ir ao desfile na avenida.” Que alívio! Como é bom acordar de um pesadelo.
Mesmo em um país tropical e edílico como o Brasil, não se pode ficar totalmente descuidado. Repentinamente, a paz pode ser substituída pelo conflito, pela guerra ou por alguma forma de totalitarismo. O excesso de regulamentação legal pode pavimentar o caminho para a erosão das liberdades de pensar ou de dizer algo. A propósito, vale lembrar Thomas Jefferson, para quem “o preço da liberdade é a sua eterna vigilância.” É preciso permanecer desperto!
Fonte: Reinaldo de Maria reinaldorvw@gmail.com/gabriela-fr@uol.com.br